CIFA: 88 ANOS!!!

"Livres como Francisco ir pelo mundo cantando o amor".

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

CARNAVAL & CINZAS

Proclamar que a vida tem a palavra final, inclusive sobre a morte, implica também empenhar-se para que a nossa juventude não se transforme numa geração perdida


Carnaval significa "festa da carne" e era, em seus primórdios, uma festa religiosa. Às vésperas da Quaresma, diante da perspectiva de passar quarenta dias em abstinência de carne, os cristãos fartavam-se de assados e frituras entre o domingo e a "terça-feira gorda". Na quarta, revestiam-se de cinzas, evocando que do pó viemos, para o pó retornaremos, e ingressavam no período em que a Igreja celebra a paixão, morte e ressurreição de Jesus Cristo.

A modernidade secularizou a cultura e, de certo modo, esvaziou o significado das festas religiosas.

Com certeza ganhou a autonomia da razão e perdeu a consistência da subjetividade. Trocou-se São Nicolau, que no século V distribuiu sua herança aos pobres, pela figura consumista de Papai Noel; transformou-se o carnaval em festa da carne em outro sentido; e fez-se da Semana Santa um período extra de férias.

Essa reificação dos ritos de passagem torna-se mais evidente nesse momento em que a humanidade enfrenta a crise de paradigmas. Destituído o marxismo da condição de ciência da História, e constatado o fracasso crônico do liberalismo nos países da América Latina e da África, ocorre uma emergência espiritual em todo o mundo.

Parafraseando Rimbaud, há uma grande "gula de Deus", que favorece o encontro, afinal, da mística oriental com a doutrina cristã ocidental, introduz a new age e a meditação, mas também abre campo aos mercenários da salvação que pregam de olho na cobiça, convencidos de que "no princípio era a verba..."

A Quarta-Feira de Cinzas instiga-nos a refletir sobre esta experiência inelutável: a morte. O processo reificador da modernidade tende a tornar descartáveis também os ritos de passagem que se sobrepõem às esferas religiosas, como nascimento, casamento e morte.

Outrora, morria-se em casa e, contra a vontade do poeta, havia choro, vela e fita amarela. Criança em Minas, acorri a enterros que eram uma festa, com toda a força paradoxal da expressão. Havia velório e carpideiras, cachaças e empadas, coroas de flores e procissão fúnebre, missa de corpo presente e encomendação no cemitério.

Hoje, morre-se quase clandestinamente, e o enterro se faz antes que os amigos possam ser avisados, como se resistíssemos à ideia de que esta vida escapa ao nosso absoluto controle.

A evocação da morte incomoda porque remete ao sentido da vida. Só assume morrer quem imprime à vida um sentido altruísta, que transcende a existência individual. Fora disso, a morte é brutal sonegação da vida.

Porém, já não se enfatiza o tema do sentido da vida. Na escola, aprende-se a competir, a ter sucesso, a dominar a ciência, a técnica e o patrimônio cultural de que somos herdeiros, mas não há nenhuma disciplina que prepare os alunos para as crises quase inevitáveis da existência: o fracasso profissional, a ruptura afetiva, a doença, a falência, a morte. Socializada a ambição, toda as vezes que o desejo esbarra na frustração ele privatiza o consolo: o alcoolismo, as drogas, o essentimento, o lobo que nos devora o coração.

A fé cristã não faz o panegírico da morte, mas proclama o seu fracasso ao centrar seu eixo na “ressurreição da carne”. Isso significa a recusa de todas as situações de morte, do pecado individual às estruturas sociais incapazes de assegurar a todos um futuro melhor.

Proclamar que a vida tem a palavra final, inclusive sobre a morte, implica também empenhar-se para que a nossa juventude não se transforme numa geração perdida.
______
Frei Betto é escritor, autor do romance policial “Hotel Brasil” (Rocco), entre outros livros.


Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/brasil/carnaval-cinzas-18629294#ixzz3zrDLsWxN 
© 1996 - 2016. Todos direitos reservados a Infoglobo Comunicação e Participações S.A. Este material não pode ser publicado, transmitido por broadcast, reescrito ou redistribuído sem autorização. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário